quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Sou Reformado, queiram ou não!


Que alguns Reformados não consideram-me um Reformado sei de longa data: desde que, e principalmente, enquanto ainda era pentecostal, ou quando ainda membro das Assembléias de Deus. A acusação é simples: “se ele aceita a atualidade deste e daquele dom, então, obviamente, não é um cristão Reformado, pois isso afeta a Doutrina do “Sola Scriptura””. Sim, eu conheço a objeção acima, e sei que um e outro a lançam contra mim. E, mesmo hoje, apesar de membro da IGREJA ANGLICANA REFORMADA, muitos continuam com o mesmo julgamento, uma vez que sigo convicto de que os carismas são para a Igreja de hoje. Aliás, Comunidade Anglicana Carisma é o nome da nossa comunidade aqui em São Mateus, Zona Leste de São Paulo (conheçam o site).

Sabendo disso, não fiquei surpreso ao encontrar certo comentário criticando minha teologia. O artigo em si, publicado no blog Filosofia Calvinista, não foi direcionado a minha pessoa, nem faz-nos qualquer referencia, contudo, dado o grande preconceito sobre o tema, meu nome acabou sendo citado nos comentários por um leitor chamado Gunnar Vingren (referencia ao nome de um dos pioneiros pentecostais no Brasil): Pentecostal calvinista é o mesmo que calvinista pentecostal - não existe. É um sonho impossível. Há um blog chamado Olhar Reformado por Marcelo Lemos que cai nessa esparrela antibíblica. Se diz até "reformado", mas advogada crenças pentecostais. O pentecostalismo é cria do liberalismo teológico que não morreu, mas continua muito vivinho sob novas roupas.O que devemos fazer: Fugir do pentecostalismo, bem como do calvinismo pentecostal...” 

Pretendo, com a Graça de Deus, pontuar algumas coisas não apenas a este leitor, como também a certos equivocos cometidos no próprio texto publicado pelo Blog. Nosso texto tem em mente, além do comentário do leitor, apenas o primeiro texto da série – Pentecostalismo e Reforma Protestante: Parte I -, que um leitor de lá achou que aplicava-se a minha teologia.

CARISMAS E “SOLA SCRIPTURA”

Em primeiro lugar, que não sendo Pentecostal a muitos e muitos anos, não sinto-me obrigado a responder criticas que são feitas ao movimento e a teologia pentecostal. E não responderei a elas. Criticas feitas ao Movimento Pentecostal preocupavam-me a dez anos atrás, hoje já não são assuntos meus. E quem já leu determinados artigos que escrevi, por mais que eu não seja um bom escritor, sabem que não sou pentecostal, e que nego abertamente as doutrinas distintivas do Pentecostalismo. “O Batismo com o Espírito Santo: Uma Análise Teológica” é um dos que eu recomendaria.

O único interesse que tenho em todo este debate resume-se a isto: se a crença na atualidade dos carismas afeta ou não o Sola Scriptura. O fato de eu acreditar na atualidade deste e daquele dom não me torna um Pentecostal, assim como a Doutrina da Predestinação não torna o “apóstolo” Miguel Angelo um Calvinista ou Reformado. Ainda que exista certa semelhança, não são a mesma coisa.

Além disso, o fato de acreditar na atualidade deste e daquele dom não me excluí do hall dos Teólologos Reformados. Por acaso nego qualquer um dos Cinco Solas? Se não faço tal coisa, não vejo qualquer motivo para tal acusação. Nossa Igreja, Anglicana Reformada, é uma Igreja totalmente apegada aos Solas, e ao mesmo tempo aberta a atuação do Espírito Santo. Qual o problema então? Certamente alguns imaginam que se o Espírito Santo pode, por exemplo, falar ao coração ou à mente dos cristãos, isso equivaleria a uma segunda fonte de autoridade. Seria o caso da Profecia. Tal objeção parece razoavel, no entanto, é anti-biblica e contradiz a própria Teologia Reformada. Ora, um dom que a própria Bíblia ordena que seja buscado, e não seja desprezado, pode ser um inimigo desta mesma Escritura? Além disso, outras reflexões podem ser feitas.

1. Deus tem inspirado sua Igreja a fazer uso de Credos e Confissões de Fé. Estes nos servem, em certo sentido, como “regras” e “guias”. Não é assim, irmãos Reformados? Certamente! Isso nos torna menos fiéis, ou mesmo traidores do Sola Scriptura? Bem, talvez hoje tal questionamento não pareça muito importante, mas ele foi feito ao longo da Hitória, e a própria Confissão de Westminister usada pelos presbiterianos aqui no Brasil, faz questão de esclarecer: Pessoas há que estranham adotar a Igreja Presbiteriana uma Confissão de Fé e Catecismo como regra de fé, quando sustenta sempre ser a Escritura Sagrada sua única regra de fé e de prática. A incoerência é apenas aparente. A Igreja Presbiteriana coloca a Bíblia em primeiro lugar. É ela só que deve obrigar a consciência (...)A Igreja Presbiteriana sustenta que a Escritura é a suprema e infalível regra de fé e prática; e também que a Confissão de Fé e os Catecismos contêm o sistema de doutrina ensinado na Escritura, e dela deriva toda a sua autoridade e a ela tudo se subordina”.

Observem que a estranheza aqui descrita não é em nada diferente daquela que encontramos em quem se recusa a ver-nos os Reformados que somos. Quando um Ministro presbiteriano subscreve os extensos capítulos de Westminister ele está negando o Sola Scriptura? Não! Ele parte do pressuposto de que suas afirmações estão de acordo com as Escrituras, de modo que a Confissão não se torna uma autoridade paralela ou rival. Alguma de todas as doutrinas que pregamos em nossas Comunidades baseia-se em outra fonte de autoridade que não o Santo Livro? Esse é o ponto aqui. Não se trata da opinião de alguém sobre a atualidade ou não dos dons, mas se procede a acusação que nos fazem de adotarmos outra fonte de autoridade que não a Escritura! Podem provar este ponto? Podem provar esta acusação? Se não podem, todos os seus argumentos contra sermos Reformados caem por terra.

2. O Espírito ilumina o coração e a mente dos cristãos. Nós, os Reformados, acreditamos no Sola Scriptura, e afirmamos ser necessário que, para compreendê-la, o homem carece ser iluminado soberanamente pelo Espírito. Mesmo o Cristão, quando lê a Palavra de Deus, necessita da iluminação interna dada pelo Espírito, a fim de que possa compreendê-la. Diz Westminister: “À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas na palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comum às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da palavra, que sempre devem ser observadas”.

Como diz certo personagem de desenho animano: “Gente!” Será que os autores de Westminster eram Pentecostais? Westminster nos diz que nada, absolutamente nada pode ser acrescentado as Escrituras. E seu apego irrestrito ao Sola Scriptura não a impediu de afirmar também que,

 (a) faz-se necessária uma iluminação interna concedida pelo Espírito Santo, ou seja, o Espírito fala direta e pessoalmente ao coração dos cristãos;

(b) que em algumas circunstâncias, não abarcadas especificamente na Palavra de Deus, o cristão poderá ser guiado “pela luz da natureza e pela prudencia cristã, segundo as regras gerais da Palavra”.

Ora, isto significa que o Espírito Santo fala internamente, e fala até mesmo atravez da “luz da Natureza”. Ao que me parece, alguns reformados pretendem ser mais reformados que sua própria confissão de fé! É fato que temos na Bíblia nossa regra infalível, e suficiente para conduzir-nos a Verdade, mas isso não exclui o fato de Deus se comunicar conosco por outros meios; e tal comunicação – através da “luz da natureza”, por exemplo – não nos desobriga de avaliarmos tudo pelo crivo da Revelação, não implicando, portanto, numa negação do princípio reformado do Sola Scriptura.

Não tenho a pretenção de expor tudo sobre o assunto aqui, nem de responder a todas as objeções de meus irmãos cessacionistas, espero, entretanto, ter demonstrado como não é tarefa tão simples negarem-nos o direito de fazermos parte da Tradição Reformada, tomando como prova nossa convicção carismática. Discordam do meu posicionamento carismático? Não vejo problema com isso, o problema é quando, de modo contraditório, julgam-se os unicos detentores da Fé Reformada.

REFORMA E “CATOLICIDADE”.

Além da forma equivocada como certos Reformados tratam a relação entre Carismas e Sola Scriptura, podemos acrescentar ainda sua aparente incapacidade em compreender a “catolicidade” do Cristianismo. Ser for mais que uma mera impressão nossa, seria o mesmo que dizer que tais pessoas veem na Reforma não uma “reforma”, mas um “demolir” e “fazer de novo”. Muitos cristãos pentecostais pensam do mesmo modo, jogando fora quase dois mil anos de História e Tradição cristã, que ao contrário do que alguns pensam, não é patrimônio dos “católicos romanos”, mas de toda a Igreja. A Reforma, entretanto, jamais tentou ser uma demonição, apenas quis ser Reforma mesmo. O desejo não era o de destruir, mas limpar a casa. Quando não temos tal conciência, perdemos a noção de nossa catolicidade.

Este seria, acredito, tema apropriado para um segundo artigo, todavia, o problema que abordaremos agora parece ser útil para esclarecer o já analisado na primeira parte.

“Assim como ser Católico e Protestante ao mesmo tempo não é possível, também não é possível ser Protestante e Pentecostal”, diz o autor do artigo. O autor toma a segunda afirmação como certa, partindo do pressuposto de que a primeira seja inquestionável. Contudo, é um sofisma, já que a primeira frase não nos diz muita coisa, e por isso, acaba não dizendo nada e desembocando numa falsa conclusão. Podemos começar pelo básico: não é possível ser Protestante sem ser católico, pois o Protestantismo aceita os Credos da Igreja Indivisa, nos quais confessamos crer e ser parte da Igreja Católica. O Símbolo dos Apóstolos, por exemplo, diz-nos, quase nas últimas linhas: “Creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição do corpo, na vida eterna. Amém!”. Este Símbolo da fé cristã, bem como outros, como o Credo de Nicéia, são confissões de fé que remontam a Igreja Indivisa, e sempre foram aceitos e cridos pela Igreja Reformada. A liturgia de nossa comunidade em São Paulo traz essa confissão (confira aqui), bem como a liturgia de Calvino em Genebra, e muitas outras! Quem diz que não se pode ser “católico” e “reformado” nega o Credo Apostólico? Negam eles o Credo Niceno? Negam integrar a Corpo Universal de Cristo? Antes de recitar o Credo, a liturgia de Calvino ora: “Senhor aumenta-nos a fé” (confira aqui). Qual fé? A Fé da Igreja Indivisa, expressa nas palavras do Credo.

O problema talvez seja terem, ainda que sem intenção, confundido catolicismo “romano” com “catolicismo” (do mesmo modo que confundem pentecostalismo com carisma). Ser Reformado implica aceitar a fé da Igreja Indivisa, o que implica em aceitar também sua catolicidade, ou a universalidade da fé cristã (“católico” significa simplesmente “universal”). Do contrário, os Reformados de hoje pretendem ser mais Reformados que há 500 anos? Estão reinventando o cristianismo e a Reforma? Se não querem reformar a fé da Igreja Indivisa, pretendem reformar o que? A fé Budista? Não! Apenas que muitos parecem ter esquecido de aprender algo muito simples com os Reformadores: que ser católico não é o mesmo que ser “romano”. Mas, se é este o caso, nós anglicanos, e outros reformados, podemos ajudá-los.

É verdade que o autor pode ter simplesmente desejado usar o termo “católico” como sinonimo de “romanismo”. Isso é possível, contudo injustificável, especialmente em discurso escrito, com intenções apologéticas.

Em todo o caso, sendo mais que possível se insista em negar-nos o honroso título de “Reformados”, resta dizer que a salvação é exclusivamente pela fé, e não por títulos cunhados por uma tradição cristã. Não entraremos nos portais celestiais com uma carteirinha de anglicano, calvinista, pós-milenista, ou por seguir as rubricas do LOC 1662, ou preferir a liturgia de Calvino em Genebra! De fato, nosso único passaporte será a “Graça”, e nem um átomo do que quer que seja a mais. Pentecostal? Carismático? Cessacionista? Nada disso será de algum valor, se não chegarmos aos céus pelo “Sola Fidei”; mas com este, todos os demais serão supérfuos e, ali, desnecessários.

Minha impressão, seja pelo comentário do leitor do blog Filosofia Calvinista, seja pelo conteúdo do próprio texto do blog, é que muitos de nossos irmãos reformados tendem a defender um visão “denominacional” do que seria a Reforma Protestante, quando, de fato, a Reforma foi um opor-se justamente a idéia de que um grupo, uma tradição cristã particular, ou qualquer pessoa, detenha direito ao monopólio sobre a Igreja de Cristo.

Por Marcelo Lemos

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